A União

Um edifício com história e arte – Uma obra de arte na UACS – Casa do Comércio

«Mercúrio» estátua de Leopoldo de Almeida – O Deus protetor do Comércio

Abertura – Enquadramento

Este ano é oportuno divulgar esta obra do escultor Leopoldo de Almeida (1898-1975), no qual se assinala os cinquenta anos do seu desaparecimento. Trata-se de um escultor, um dos mais importantes estatuários e reconhecido no panorama da Arte Portuguesa do Século XX, do seu género, caraterizado na maior parte dos seus trabalhos, pelo estilo e escola classicizante, de uma linguagem claramente figurativa. É o autor que tem mais obra na Cidade, um autêntico mestre que fez escola e que produziu discípulos e seguidores no ensino, na academia e na arte do bem fazer e executar, de um perfecionismo nos detalhes de cada obra digno de nota, que se distingue dos seus companheiros do mesmo ofício e metier. Destaca-se pelo seguro no domínio da técnica, elegância e vigor da forma que através da sobriedade torna assim as suas obras intemporais.

O historial desta peça apresenta algumas curiosidades, dignas de interesse, que vale a pena conhecer

É uma escultura que detém à partida uma presença que ninguém poderá ficar indiferente pela sua dimensão, feita em bronze, de grande porte, que se encontra em Lisboa, em pleno centro da Cidade, realizada por Leopoldo de Almeida. A estátua Mercúrio apesar de surgir no espaço exterior, mais especificamente no pátio de entrada da UACS – Casa do Comércio, na rua Castilho, nº 14, tem sido frequentemente esquecida como escultura e obra pública nos manuais dedicados à matéria da história da escultura e estatuária em detrimento de outros trabalhos que se encontram no espaço público. Este facto deve-se, por um lado, à sua localização, de reduzida visibilidade para quem não esteja por perto, porque se situa inteiramente resguardada, estando como que recatada junto a um canto do edifício de grande volumetria, quase como que escondida, discreta e distante do largo passeio público, e por outro, pela reduzida e diminuta divulgação. A peça não está por isso suficientemente valorizada. Contudo ao passar despercebido pelos transeuntes (passeantes, usufruidores) e da sua extrema discrição apresenta-se até este momento, poderá ter tido uma vantagem que é o facto de se encontrar muito bem conservada por não ter sido vandalizada ao longo dos tempos, como tantas outras que polvilham a nossa urbe.

Pormenores da imprensa da época sobre a estátua    

Segundo documentos da imprensa da época, numa pequena alusão ao evento a peça escultórica destinava-se, a ficar num vasto salão de entrada no seu espaço interior e não como se encontra presentemente no seu exterior. Não sabemos ao certo se alguma vez terá sido ocasionalmente instalada inicialmente nesse local (1). Um dos textos datado de 3 de junho de 1968 refere o seguinte: «Para o Palácio do Comércio, em construção na rua Castilho, está a modelar uma figura de Mercúrio o estatuário mestre Leopoldo de Almeida. A estátua tem uns três metros e meio de altura, destinando-se ao vasto salão de entrada da sede dos vários organismos das atividades comerciais de Lisboa. Deverá ser fundida em bronze e inaugurada provavelmente em fins de Julho». O ano assinalado na notícia não se veio a verificar; dado que presume-se que tenha sido inaugurado pelo menos um ano mais tarde, em 1969. Neste contexto é de anotar que a peça apesar de se situar no exterior, está enquadrada no átrio de entrada do edifício. Átrio esse que poderá a qualquer momento segundo o desenho da arquitetura do edifício passar a estar fechado, consoante a decisão dos órgãos diretivos da UACS.

Mercúrio como Patrono dos Comerciantes

O escultor modelou uma estátua de caráter alegórico de grande escala inspirada numa figura baseada em Mercúrio, também como Patrono dos Comerciantes. É um deus da mitologia clássica, o mito pagão Hermes, elemento da divindade romana, que detinha os segredos da magia e das ciências ocultas/esotéricas. A figura de Mercúrio surgiu muito cedo na Itália central, enquanto divindade protetora dos cereais, rapidamente passa a ser considerado como o Deus do Comércio, alteração que se regista após a criação do colégio dos mercuriais – corporação de mercadores (c. 495 a.c.). refere Rita Fragoso de Almeida (2). Este escultor concebeu assim um deus estável e terreno, com os pés bem assentes e firmes num largo pedestal numa base retangular de reduzida espessura feita da mesma matéria.

Descrição e Historial do Mercúrio – estátua no edifício da UACS de L. A.

Trata-se de uma figura masculina de corpo inteiro, de 1967-68, assinada na base com o nome de Leopoldo no ano de 1967, obra encomendada pela União dos Grémios Lojistas de Lisboa (UACS), em bronze, com cerca de 3 m e meio de altura, caracterizada por ter uma forte presença física de linhas e volumetria bem constituída nas suas proporções anatómicas, de detalhes quase perfeitos no plano técnico, numa figura de modelação clássica. O modelo definitivo em gesso patinado para a estátua Mercúrio encontra-se atualmente exposto na entrada do Museu Leopoldo de Almeida nas Caldas da Rainha, com as seguintes dimensões: Altura:347cm; Largura: 146cm e Profundidade: 111cm. Sendo de acrescentar que no interior no piso térreo das instalações da UACS, encontra-se exposta numa montra a maqueta em bronze da estatueta de reduzidas dimensões da mesma obra, do trabalho que se encontra à entrada no exterior. A estátua apresenta-se de pé, semi-coberta por um panejamento junto à cintura, de tronco nú, de mão erguida e cabeça coberta com um capacete (em vez de um chapéu de abas largas como é vulgar representá-lo). Esta figura é composta de duas pequenas asas, que se repetem nos pés como é habitual na iconografia de Hermés em Grego/Mercúrio Clássico. De uma maneira geral costuma-se representar a imagem do corpo da alegoria, sandálias nos pés com asas, sendo um dos atributos característicos comuns.

O mensageiro do Olimpo numa mediação perfeita

Contràriamente à representação habitual desta Alegoria, a de Leopoldo não calça os pés de sandálias aladas, criando apenas um apontamento alado num simples registo. O elemento das asas é muito importante no quadro simbólico mitológico. Significa o movimento de intercâmbios e de adaptação, a reviravolta, a velocidade, a astúcia, a destreza, a força da elevação e a aptidão para os deslocamentos velozes e rápidos, de cabriolagens incessantes, mudanças repentinas de direção e detém o ato de dissimular. Tinha o ofício de mensageiro do Olimpo, servindo de mediador entre a divindade e os homens. Assegurando a passagem entre o mundo terrestre e celeste, simbolizando os meios de troca entre o Céu e a Terra, em suma uma mediação perfeita. Diante da dupla pressão dos impulsos interiores e solicitações exteriores, esta divindade é a melhor agente de adaptação à vida e o Hermés (Mercúrio) é igualmente o Deus das viagens. Era honrado especialmente nas encruzilhadas dos caminhos, onde as suas estátuas serviam para afastar os fantasmas e evitar os maus encontros. Segundo a análise astrológica Mercúrio é o planeta mais rápido, é o vizinho mais próximo do Sol, vindo imediatamente após os dois planetas luminosos, o Sol, astro da vida, e a Lua, astro da geração. Isto é da manifestação da vida no nosso mundo transitório. Se o Sol é o Pai Celeste, e a Lua, a Mãe Universal, Mercúrio apresenta-se como o filho deles, o Mediador. Segundo os signos do zodíaco, cuja natureza se harmoniza com a desse planeta, são eles: Virgem, que segue a linha solar do Leão, e Gémeos, que precedem o signo lunar de Câncer.

Análise e Estilo do Mercúrio de L.A.

É de mencionar que esta obra produzida é influenciada pelas linhas da estatuária de uma linguagem num universo clássico, afastando-se das características no plano plástico, estético e artístico do percurso e trajeto inicialmente esboçado pelo escultor a partir da década de 20 e nos anos 30 do Séc. XX, no qual imperava uma certa harmonia, delicadeza e fragilidade aos corpos esculpidos imbuídos e plenos de movimento, tornava-se mais evidente na solução encontrada. Apresenta assim um Mercúrio sereno de corpo frontal e rosto perfilado, erguendo um caduceu na mão direita, constituído por um bastão curto entrelaçado e enrolado por duas serpentes/cobras e um elmo alado, na qual a cenografia dos gestos origina uma solenidade retórica. O caduceu é um cajado alado de Mercúrio, símbolo do Renascimento, usado hoje como o símbolo da profissão de médico. É um dos elementos e atributos principais que fazem parte da iconografia que adornam a figura do Deus Hermés Grego equivalente em Roma a Mercúrio (Deus da Mitologia Romana). Por constituir um símbolo de natureza essencialmente dualista, no qual se confrontam os princípios contrários e complementares: trevas-luz, baixo-alto; esquerda-direita; feminino-masculino.

A densidade e alguma rigidez nas linhas da estátua de alguma elegância na sua volumetria que Leopoldo opta por desenvolver contrasta sobremaneira com a imagem que trazemos habitualmente do Mercúrio, carece assim de uma certa agilidade e fragilidade que caracteriza e define a personalidade desta imagem alegórica simbólica, produzindo assim um efeito deveras insólito. Mas o símbolo do Mercúrio, pela grande abrangência de significados, detém igualmente uma componente ligada ao universo racional no desenvolvimento da inteligência, por forma à capacidade de discernimento, pelo facto de separar as coisas, para não mais se confundir com elas e tomar distâncias em relação a si mesmo. Esse jogo espírito frio contribui para guiar o instinto, reprimir a vida sensível e afirmando assim o mundo da razão. Neste contexto a estátua adequa-se e encontra-se próximo deste enquadramento e estado de espírito.

Um outro estudo de Leopoldo de Almeida para a União dos Grémios Lojistas de Lisboa

A atual estátua de Mercúrio apresenta formalmente nas suas linhas gerais rígidas de um volume denso, de algum estatismo que contrasta com um segundo estudo realizado em gesso patinado, do mesmo autor. Este último não foi escolhido, era bem mais desenvolvido dado a riqueza e complexidade da sua composição criando uma maior dinâmica à obra. Este segundo exemplar realizado anteriormente, (3) data do ano de 1967. Pensa-se que deve ter sido um estudo da obra, uma experiência para a antiga denominação da UACS, União dos Grémios Lojistas de Lisboa, como é intitulado o trabalho. Este grupo escultórico dedicado à mesma alegoria, acabou por ser afastado e não ser o escolhido. É constituído por um conjunto de elementos, três figuras masculinas de modelação clássica. Dois homens de mãos dadas, com forte tensão, de corpos robustos e viris que seguram um pedestal alto ladeando-o, encimado por uma estatueta o Mercúrio, na qual os dois seres masculinos que abraçam em torno dessa estrutura. A imagem da alegoria de Mercúrio é representada por uma figura mitológica, uma terceira estátua de dimensões muito reduzidas, encontra-se situada a um nível superior, no lugar cimeiro, no topo do monumento. Relativamente a este exemplar, segundo a investigadora Rita Mega (4) anota que a pose destas duas figuras masculinas que seguram o Mercúrio é semelhante à que foi utilizada no anverso da medalha, alusiva ao Código Civil, (5) da autoria do mesmo escultor, na qual os dois elementos (seres) masculinos apertam as mãos, num gesto concórdia, datando de 1966, de igual período do projeto das obras dedicados ao tema de Mercúrio. No estudo do segundo exemplar deste conjunto escultórico de Leopoldo, aparecia no pedestal na zona frontal uma inscrição executada de técnica esgrafitado alusiva à União dos Grémios Lojistas. Este projeto de trabalho em gesso acabou por não se concretizar e, portanto, não chegou a ser passado ao material definitivo, o bronze. Teria formalmente e a nível do seu formato, uma função que se assemelha, numa linguagem mais próxima da categoria de monumento, pelo facto do conjunto figurativo estar assente numa estrutura de base quadrangular e por envolver várias figuras do que constituir propriamente uma simples estátua pedestre. Este estudo do modelo do grupo escultórico União dos Grémios Lojistas de Lisboa assinado na base de 1967 em gesso patinado, encontra-se incorporado em depósito no Museu de Lisboa desde 2017, apresenta as seguintes dimensões: Altura: 58cm; Largura: 23cm e Profundidade: 16,1cm.

Em 1968, o escultor optou por criar simplesmente e desenvolver uma estátua com a representação exclusivamente dedicada à alegoria de Mercúrio, que na situação da altura fazia mais sentido e seria mais entendível e lógico, pelo enquadramento de que dispunha, isto é, pelo facto de ficar instalada junto ao edifício e não propriamente inserida num espaço urbano e livre de constrangimentos.

Mercúrio voando – Estatueta no interior da Casa do Comércio

Num dos pisos superiores no interior das instalações da UACS, deparamo-nos com uma pequena estatueta, ofertada por um ilustre associado da UACS, José Afonso Duarte, em novembro de 2000, estando estas referências assinaladas em jeito de legenda na base do trabalho. Consiste numa reprodução/cópia em bronze patinado, que representa a composição da célebre figura de Mercúrio voando,criada por volta de 1580 pelo escultor do estilo renascentista Giambologna. Na peça da UACS está gravada na parte inferior da escultura o nome do fundidor [F. Barbedienne – Fondeur]: tratando-se de um prestigiado fundidor parisiense, que era um metalúrgico e fabricante francês  Ferdinand Barbedienne (1810-1892), conhecido como fundador do bronze. Na segunda metade do Século XIX foram lançadas para o mundo inteiro uma série de peças quando ele iniciou um negócio com o inventor e gravador Achille Collas. Essa parceria tornou-se um dos empreendimentos artísticos mais importantes do Século XIX. Usando a invenção de Collas para reduzir esculturas, as suas miniaturas de bronze de famosas estátuas antigas gregas e romanas. Entre os principais artistas reproduzidos pela empresa assinala-se o escultor Auguste Rodin.

A UACS pode sentir-se privilegiada em ter uma cópia realizada a partir do trabalho do Mercúrio Voador de Giambologna, uma peça desta envergadura.

O original do Mercúrio voando ou voador de Giambologna no Museu Bargello de Florença O Mercúrio de L.A. instalado à entrada do edifício à entrada da UACS é bem diferente da iconografia existente sobre o mesmo tema realizado por outros criadores, tais como se verifica de uma maior evidência a representação feita por artistas internacionais, especialmente o escultor italiano Giambologna (1529-1608) (6). Foi um escultor maneirista, o mais perfeito representante desta tendência artística, onde o seu Mercúrio Voando/Voador produz uma obra com uma figura desenhada de uma extrema leveza, de linhas sinuosas, serpenteadas e ziguezagueantes, mais especificamente na expressão italiana serpentinata que significa figura em forma de serpente. A imagem da alegoria parece estar a elevar-se, para levantar vôo, como se se tratasse de um bailarino, com os membros inferiores e superiores em torção, cheios de movimento num corpo frágil e elegante, com um precioso polimento de superfície. Mercúrio Voando de Giambologna é uma das obras mais conhecidas deste artista do qual existem várias versões. É o mais famoso símbolo de escultura do renascimento italiano.

Mercúrio Voando/Voador, escultura em bronze do escultor italiano Giambologna (1529-1608), nascido como Jean de Boulogne, também conhecido como Giovanni Bologna, nasceu em Douai, Flandres (hoje na França). O original da estátua encontra-se localizado no Museu Nacional do Bargello, em Florença. Entre março e junho de 2006, foi realizada uma Exposição nesse espaço sobre a obra deste escultor denominada Giambologna. Os Deuses, os Heróis (Gli dei, gli eroi).

Como nasceu esta peça escultórica propriamente dita, vale a pena contar

Enquanto o escultor trabalhava na obra do Neptuno, o Delegado Papal solicitou a Giambologna uma estátua para ser instalada no pátio do Archiginnasio, a sede da veneranda Universidade de Bolonha, que deveria representar a escultura Mercúrio apontando para o céu, simbolizando a origem divina do saber. O projeto acabou por não ser realizado, não se concretizou mas resultou no entanto, num modelo notável que constituiu a primeira de uma série de estátuas do deus que culmina no célebre Mercúrio voando/voador, este sim muito mais dinâmico do que o projeto original. Um dos pormenores a salientar é o facto do Mercúrio estar pousado apenas com a ponta do pé sobre o sopro de um zéfiro (7) o que lhe confere uma sensação notável de ausência de peso, liberdade de movimento, harmonia e graça.

Mercúrio levado pelo sopro do vento

Mercúrio é quase como que levado pelo sopro do vento sobre o qual se equilibra. De volta a Florença em 1556, o escultor apresentou este Mercúrio aos Medici, que, entusiasmados, ordenaram a sua fundição para enviá-lo como presente diplomático ao imperador Maximiliano II, como parte dos entendimentos entre a corte florentina e a austríaca para o casamento de Francesco I com Joana da Áustria. Quando as bodas foram realizadas ele foi encarregue de criar uma alegoria para as festividades, o grupo Florença derrotando Pisa, que foi instalada no Palazzo Vecchio e hoje encontra-se localizado no Museu Nacional do Bargello em Florença.(8) Trata-se de um reconhecimento a um artista admirado do público italiano e internacional. É uma homenagem de Florença a esse seu filho adotivo, que não só aumentou a beleza estética da cidade com as suas peças, como permitiu que mantivesse, em seu tempo, um estilo europeu em escultura, no brilho da capital das artes. Foi finalmente, um encontro com a escultura de Giambologna que não podia ser mais adiado.

Mercúrio inspira outros artistas plásticos A representação do mensageiro do Olimpo no universo da escultura é tema recorrente na iconografia clássica na História da Arte Portuguesa e Internacional, em diversas épocas e períodos históricos distintos, tanto no suporte da pintura como na área da escultura. Os artistas plásticos são especialmente fascinados pelo imaginário rico de Mercúrio que caracteriza esta divindade com as suas propriedades, qualidades, valências e atributos que possui, versando, cada criador com o seu estilo próprio. Como se pode observar no escultor Giambologna já mencionado neste estudo; outros autores internacionais merecem igualmente destaque como: o escultor francês Jean-Baptiste Pigalle (1714-1785) reconhecido por suas esculturas nos estilos neoclássico e rococó, que refletiam grande delicadeza e realismo na representação de figuras humanas. Pigalle foi um dos artistas mais influentes de seu tempo, que retratou e esculpiu Mercúrio sentado, colocando e amarrando as sandálias aladas, a sua obra mais famosaque se encontra em exposição no Museu do Louvre. O seu legado artístico perdura até hoje, traz uma vitalidade que transforma a figura do deus numa alegoria da velocidade, tendo uma atitude giratória. O jogo expressivo visual permite observar de vários pontos de vista enquanto percorremos a composição. O seu gesto de prender o calcanhar não requer a sua atenção, mas é enfatizado pela convergência do braço e da perna; igualmente nesta posição, o artista dinamarquês Bertel Thorvaldsen (1770-1844) esculpiu um Mercúrio em mármore, Preparando-se ou está prestes a matar Argos, sendo uma peça emblemática do neoclassicismo; período que buscava reviver os ideais de harmonia e beleza da Antiguidade Clássica. Retrata Mercúrio num momento de tensão e elegância, prestes a cumprir a sua missão de matar Argos com a sua espada, o gigante de cem olhos. A história é baseada na mitologia grega, onde Mercúrio foi enviado por Zeus (pai de Hermés) para libertá-lo, transformada em vaca e vigiada por Argos a mando de Hera. É uma peça baseada na obra Metamorfoses, de Ovid. A escultura, exibida no Museu Thorvaldsen, em Copenhaga (9), destaca a destreza de Thorvaldsen em capturar o momento com dinamismo do movimento e a serenidade da figura, características marcantes do estilo neoclássico; de Artus Quellinus (1625-1700) artista flamengo que também interpretou Mercúrio com uma estátua pedestre identificado pelo seu capacete alado, coberto por uma túnica elegante, calçando sandálias aladas, detendo uma bolsa fechada por um fio, um caduceu, um galo e um bode. A escultura está no Palácio Real de Amsterdão, nos Países Baixos e por fim, um óleo s/tela com uma pintura localizada em Vizille, perto de Grenoble que representa uma Estátua de Mercúrio numa Paisagem do pintor francês Charles Meynier (1768-1832).

Mercúrio sentado, colocando e amarrando as sandálias aladas, escultura em mármore do artista francês Jean-Baptiste Pigalle (1714-1785), que se encontra em exposição no Museu do Louvre.

Mercúrio – Preparando-se ou está prestes a matar Argos, escultura em mármore do artista dinamarquês Bertel Thorvaldsen (1770-1844). A escultura exibida no Museu Thorvaldsen, em Copenhaga, mas o original encontra-se no Museu do Prado.

Mercúrio, estátua pedestre do escultor Artus Quellinus (1625-1700), artista flamengo A escultura está no Palácio Real de Amsterdão, nos Países Baixos.

L.A. e os Museus Quanto ao tema Mercúrio tratado por L.A. como noutras peças do mesmo artista, realizou uma série de desenhos preparatórios, esbocetos com detalhes de pormenor, pequenos modelos, maquetas que sofreram sucessivas alterações e maquetas até chegar ao modelo definitivo. Estes concebidos em material precário, gesso patinado, como é recorrente na linha de metodologia do seu trabalho. Todo esse espólio foi inicialmente doado pelos herdeiros do escultor à Câmara Municipal de Lisboa, ao Museu de Lisboa em 30 de dezembro de 1985 (dez anos após a sua morte). Essa doação foi avaliada em reunião de Câmara no dia 30 de junho de 1986, na qual foi aprovada a proposta de uma moção de louvor, em agradecimento público aos herdeiros pela respetiva doação. Cerca de uma década depois e nesse contexto, a CML realizou uma ampla exposição dedicada ao mestre intitulada O Atelier de Leopoldo de Almeida promovida e organizada pela Câmara Municipal de Lisboa, (10) e na qual puderam ser vistos uma parte importante do trabalho de Leopoldo, entre eles os diferentes Mercúrios. Desde o princípio da doação do espólio havia a intenção da CML criar um Museu de Escultura na cidade, exclusivamente dedicado a este escultor. Foram projetados vários espaços a ser construídos de raiz em locais diferentes, após ter sido efetuada diversas opções de escolha, nenhuma das alternativas seguiu em frente e por conseguinte o longo processo de grande complexidade arrastou-se durante muitos anos, e finalmente acabou por não se concretizar. Mais tarde, cerca de quarenta anos após a sua morte, foi finalmente criado um Museu dedicado a este escultor, tendo sido inaugurado no dia 15 de maio de 2017 (ainda na presença da sua filha também artista sobejamente reconhecida Helena Almeida), no Centro de Artes nas Caldas da Rainha. Este Centro inclui outros espaços expositivos dedicados aos escultores: António Duarte; João Fragoso e Barata Feyo. Uma parte significativa do espólio da obra de Leopoldo está também nesse espaço museológico, isto é, parte dessas peças estão também incorporadas pelos dois Museus, num Depósito a cargo e gerido pelo Museu de Lisboa e no Centro de Artes das Caldas da Rainha. A Coleção dos trabalhos de Leopoldo nas Caldas possui características diferentes da doada pelo próprio escultor à autarquia da capital. A de Lisboa tem um caráter mais monumental e a mais recente é constituída pelo acervo de pequeno e médio formato, incluindo o suporte em desenho. É um espólio mais seminal do ponto de vista criativo e artístico e até talvez mais interessante, porque permite conhecer o processo evolutivo e de feitura de uma escultura, através das diferentes fases de transformação, passando pela modelação em barro, a aplicação tridimensional em volume, chegando aos trabalhos em gesso feitos a partir de moldes até culminar na obra definitiva. Todo esse mecanismo é acompanhado de um aspeto mais teórico ligado ao universo da escrita de notas explicativas e de documentos importantes realizados pelo próprio autor que complementam esta Coleção.

«…esta coisa extraordinariamente bela que é sempre o momento em que se começa a concretizar e a definir a ideia…» (11) Aliás o modelo definitivo do Mercúrio em gesso patinado para a estátua que se veio a concretizar, encontra-se presentemente exposto na entrada do Museu Leopoldo de Almeida nas Caldas da Rainha, apresenta as seguintes dimensões: Altura:347cm; Largura: 146cm e Profundidade: 111cm; o mesmo Museu tem também na sua posse uma maqueta de Mercúrio, em gesso patinado de verde de 1968, com as seguintes dimensões: Altura: 76cm; Largura: 28cm e Profundidade: 17cm; assente numa base igualmente em gesso, de altura: 3cm; Largura: 29 cm e Profundidade: 22cm. Esta peça está ligeiramente deteriorada, apresentando algumas falhas na patine e fissuras. Da mesma forma, pode-se observar dois desenhos em papel assinados com as iniciais do nome do escultor L.A. estudos de 1967, que serviram de inspiração para a peça definitiva do Mercúrio. Essas composições são trabalhos caracterizados de grande e forte expressividade que funcionam como autênticos e preciosos auxiliares, servindo de pontos de partida para o trabalho do acabamento final. Num dos desenhos com 17,2cm x 16,1cm, surgem dois corpos masculinos pedestres de posicionamentos semelhantes mas de escalas diferentes; enquanto no segundo esquisso de 18,1cm x 21,7cm, apresenta uma figuração mais rica, maior movimento, na qual aparece um conjunto variado de elementos.

Modelo definitivo para a estátua Mercúrio, em gesso patinado, 1968, Ficha e Nº de Inventário MC-ESC-0216; dimensões: altura: 347cm; Largura: 146cm e Profundidade: 111cm. A obra encontra-se atualmente exposta à entrada do Museu Leopoldo de Almeida nas Caldas da Rainha.

A importância dos estudos em L.A.

Quem estuda a forma como a obra desemboca na pedra ou no bronze, necessita de ir mais longe e tentar perceber quais as motivações do artista, bem como verificar se a execução final do trabalho correspondeu à ideia que esteve presente no início e de que género de transformações e alterações é que surgiram. Como é do conhecimento geral este artista plástico era um desenhador compulsivo, estava sempre a desenhar. Para cada obra que projetava e depois fazia, realizava inúmeros esquissos, pormenores, detalhes, até conseguir criar e acertar no trabalho final para a sua versão definitiva. O desenho como disciplina autónoma revela-se em primeiro mão um instrumento principal e mesmo crucial nas artes visuais. De uma forma geral, para um escultor o desenho torna-se um suporte de um registo e preparatório, sendo um instrumento basilar para o auxílio da construção de peças de volumetria de escala, sobretudo de porte monumental. Todavia, existem escultores que não seguem este caminho, esta linha de pensamento como metodologia de trabalho. Nem todos os escultores possuem este método de trabalho, havendo mesmo quem passe imediatamente à modelação, fazendo a escultura sem fazer qualquer desenho.

Estudo para Mercúrio – Desenho, 1967, dimensões: 18,1 x 21,7 cm, assinado LA – Acervo do Museu Leopoldo de Almeida, Centro das Artes, Caldas da Rainha.

O desenho é a escrita do escultor O Prof. Escultor Diogo de Macedo (12) àcerca da profunda relação estreita entre a área do desenho e da escultura afirma de uma forma assertiva o seguinte: «Se um escultor não souber desenhar não poderia esculpirporque a escultura, mais do que a pintura, é um desenho por meio de formas, volumes, dimensões e harmonias, num ilimitado conjunto de desenhos a formarem um todo que fatalmente tem de organizar determinado acerto de perfis, superfícies e profundidades, para que a luz, o espaço e as eventuais situações onde viva, não acusem senão aberrativos, que só um mau desenho de construção e valorização motivariam». O desenho é a escrita do escultor, na qual se revela diretamente através do pensamento do artista. O desenho faz assim parte de um instrumento essencial, um exercício experimental de trabalho numa prática permanente e constante. Passa a ser uma escrita que o autor se serve para a inspiração das figuras nas peças que são estudadas previamente definidas. O desenho ajuda sobremaneira o artista a visualizar eficazmente a obra no espaço e a materializar o objeto escultórico. Portanto o desenho de escultor caracteriza-se por apresentar a qualidade de uma economia de meios, definindo os traços finos, grossos ou cheios com contornos sugestivos consoante o que pretende criar, definindo o movimento de uma determinada figura reclinada, sentada ou pedestre, de uma extrema sobriedade apenas com as anotações essenciais e de simples apontamento para a conceção inicial de uma peça. Frequentemente é através de um desenho que o projeto a construir fica mais clarificador porque visualmente torna-se mais evidente. Por isso os desenhos de escultor valem sobretudo por esta coisa extraordinariamente bela que é sempre o momento em que se começa a concretizar e a definir a ideia.

O Edifício da UACS também tem história

O projeto da arquitetura do edifício sede da União de Associações do Comércio e Serviços (UACS) que acolheu a obra com a peça Mercúrio, foi construído através da encomenda do proprietário do bloco edificado no qual o Presidente da instituição era o Sr. Aníbal David, da anterior denominada (União de Grémios de Lojistas de Lisboa) com sede na rua Castilho, 14 a 14D. (14) O prédio é definido de feições modernas, de uma linguagem contemporânea na sua volumetria monumental de linhas sóbrias e consistentes na fachada, com as características definidas numa estética própria do período da década de 60. Os desenhos das plantas do projeto do edifício datados entre os anos de 1962 e 69 estão assinados pelo Arqto. L.R.C. de Castro Freire em colaboração com o Engº. Civil Júlio Freire Themudo Barata. Conforme é referido na memória descritiva e justificativa de 3 de março de 1969 assinado pelo arquiteto, foi exigido para a construção o mais perfeito acabamento possível e a boa escolha de materiais de modo a conseguir uma arquitetura de qualidade. No edificado é de destacar a escala de grandiosidade manifestada pelo pormenor dos lanços de escada localizados em frente e do lado oposto onde se situa a peça escultórica. Este elemento arquitetónico cria uma dinâmica própria à construção e contrasta com a geometria acentuada nas linhas de composição geral da fachada; na qual é assente num conjunto de pilastras, como é bem visível no desenho das telas finais da planta do projeto no alçado principal sobre a rua Castilho. Na memória descritiva e justificativa do projeto de arquitetura não vem mencionada nenhuma referência à estátua nem aparece nos desenhos das plantas e alçados, o esquisso em esboço da peça escultórica. De nome completo Leonardo Rey Colaço de Castro Freire (1917-1970) foi um distinto, dedicado e talentoso arquiteto com obra importante naquela época, na sua atividade profissional, mas foi sempre discreto face aos nomes cimeiros desse período no panorama geral dos arquitetos. A título de curiosidade, foi este arquiteto nomeado em 1957 para substituir Porfírio Pardal Monteiro pela morte deste, na construção do empreendimento do Hotel Ritz (atual Four Seasons) em Lisboa, para coordenar e prosseguir os trabalhos de grande monta. Foi exatamente esta figura que escolheu os vários decoradores e artistas plásticos que participaram e colaboraram com peças artísticas no interior e exterior desse hotel.

Um arquiteto distinguido com o Prémio Valmor 70 no edifício América Entre outras construções, este arquiteto realizou o projeto do edifício de nome América, situado no cruzamento entre a Avenida dos Estados Unidos da América, nºs 53-53G e a rua Coronel Bento Roma, nºs 12A-12E, em Lisboa, na qual foi-lhe atribuído o galardão do Prémio Valmor em 1970. É de referir que se encontra assinalado essa premiação, no exterior do bloco por cima da porta principal, numa placa metálica. No entanto, a decisão não acolheu a unanimidade do júri e muito se tem especulado quanto aos motivos da atribuição deste prémio. (15) Foi o Arqto. Pedro Vieira de Almeida que contestaria e discordaria da atribuição do Prémio desse ano, embora considerado uma obra de arquitetura correta e séria, resulta em si mesma academizante e ambígua, não apresentando valores de modernidade coerentemente assumida, conforme ficou exarado em Ata de 21/5/1971, as seguintes afirmações: «Considerando que o sentido da atribuição do Prémio Valmor não é o de uma consagração do somatório de eventuais tentativas de uma vida de trabalho de um arquiteto, mas o da distinção de uma obra-construída que tenha possibilidade de ser em relação ao seu tempo». (16) Há quem defenda que na base desta escolha esteve subjacente desta prestigiada distinção, uma forma de prestar homenagem à carreira geral deste arquiteto-autor, que terá sido também uma forma de fazer um reconhecimento pelo seu percurso que, entretanto, viria a falecer pouco tempo depois.  

Curiosidades da pré-inauguração da UACS No ano de 1969, já muito próximo da sua inauguração, o Grupo Amigos de Lisboa realizou uma visita à sede da UACS com a anterior denominação de (União dos Grémios dos Lojistas de Lisboa), conduzida pelo seu Presidente, Sr. Aníbal David (17), descrevendo as instalações de confortáveis e luxuosas, tendo um cinema e uma sala de receções magnífica, com excelentes e fabulosos tapetes, não deixando de mencionar em tom elogioso uma bela estátua de Mercúrio, que já estava implantada nesse espaço. (18) Transcrevo algumas passagens do relato publicado no Olisipo dignas de interesse que merece ser divulgada porque apresenta certas curiosidades e que ajudam a compreender a evolução da construção do edifício, no qual faz assim parte do historial do projeto edificado: «Em 3 de Agosto, a Direção acompanhada de muitos associados realizou uma visita particular à sede da União dos Grémios dos Lojistas de Lisboa a inaugurar oportunamente. O edifício, ainda em acabamentos, custou cerca de quinze mil contos e compõe-se de nove andares, na Rua Castilho, nºs 14-16, dos quais a União ocupa quatro. No átrio encontra-se uma linda estátua de Mercúrio e o emblema também em bronze da União, obras de Leopoldo de Almeida. Os visitantes foram aguardados pelo Presidente da União, o nosso consócio Sr. Aníbal David, e outros diretores que os cumprimentaram. Agradeceu o Diretor Secretário-Geral que recordou ter sido colega de vereação do Sr. Aníbal David, acentuando a amabilidade da sua presença. As instalações do Grémio são a um tempo confortáveis e luxuosas, tendo um cinema e uma sala de receções com magníficos tapetes e um grande painel do artista Severo Portela» (19) trabalho esse que se encontra desde o início da abertura da sede da UACS. É de referir que esse grandioso e monumental painel numa composição em tapeçaria ainda está presentemente nas instalações cuidadosamente, devidamente preservado e bem conservado.

Mercúrio – o anfitrião, dando as boas-vindas a um sedutor museu imaginário de escultura    

Apesar da peça se encontrar no exterior, é de difícil leitura e perceção visual no conjunto global, pelo seu enquadramento, grandeza e volumetria, não possuindo de uma certa forma espaço suficiente à sua volta para respirar livremente, estando como que recatada, demasiado escondida. Na maneira como está situada junto ao edifício, como que a protegê-lo por um lado, e por outro como se aguardasse pelo visitante ou de um simples curioso, perante a forma como se encontra posicionada, o Mercúrio poderia eventualmente servir de anfitrião, dando as boas-vindas a um sedutor e simpático museu de escultura à semelhança dos que se encontram com alguma frequência se faz pela Europa fora, de pequenos e sedutores espaços museológicos.

Para quem aprecia a área artística no campo visual e das artes plásticas, quiser conhecer e tiver curiosidade poderá deslocar-se e observar de perto para contemplar uma figura alegórica numa obra de arte que também representa o mensageiro do Olimpo, sendo um mediador por excelência. 

Manuela Synek

(Historiadora de Arte) Notas: L.A. – Leopoldo de Almeida; UACS – União de Associações do Comércio e Serviços.   

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